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Dom Quixote e o ChatGPT

Membro conhecido
Oct
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O sonho por oráculos é coisa antiga.
Compartilho com vocês uma deliciosa passagem de Dom Quixote, a qual ilustra muito bem essa estranha obsessão humana.

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Primeira Parte

Contou D. Quixote, por miúdo, todos os sucessos do governo de Sancho, com o que divertiu muito os ouvintes. Levantada a mesa e tomando D. Antônio a D. Quixote pela mão, entrou com ele num apartado aposento, onde não havia outro adorno senão uma mesa de um pé só, que parecia toda de jaspe, em cima da qual estava posta uma cabeça, que parecia de bronze, em busto, como as dos imperadores romanos. Passou D. Antônio com D. Quixote por todo o aposento, rodeando muitas vezes a mesa; e depois disse:

— Agora, senhor D. Quixote, que sei que ninguém nos escuta e que está fechada a porta, quero contar a Vossa Mercê uma das mais raras aventuras ou, para melhor dizer, das mais raras novidades que imaginar-se podem, com a condição de que Vossa Mercê há-de encerrar o que eu lhe disser nos mais recônditos recessos do segredo.

— Assim o juro — respondeu D. Quixote — e ponho-lhe uma pedra em cima, para mais segurança; porque quero que Vossa Mercê saiba, senhor D. Antônio, que está falando com quem, apesar de ter ouvidos para ouvir, não tem língua para falar: portanto, pode, com segurança, trasladar o que tem no seu peito para o meu e fazer de conta que o arrojou aos abismos do silêncio.

— Fiado nessa promessa — respondeu D. Antônio — quero que Vossa Mercê se admire do que vai ver e ouvir e que me dê a mim algum alívio da pena que me causa não ter a quem comunicar os meus segredos, que não se podem dizer a todos.

Estava suspenso D. Quixote, esperando em que iriam parar tantas prevenções. Nisto, D. Antônio, pegando-lhe na mão, passeou-a pela cabeça de bronze e por toda a mesa e pelo pé de jaspe que a sustinha, e disse:

— Esta cabeça, senhor D. Quixote, foi feita e fabricada por um dos maiores nigromantes e feiticeiros que teve o mundo, polaco de nação, parece-me, e discípulo do famoso Escotillo, de quem tantas aventuras se contam; esteve aqui em minha casa e, por mil escudos que lhe dei, lavrou esta cabeça, que tem a propriedade e a virtude de responder a quantas coisas se lhe perguntarem ao ouvido. Traçou rumos, pintou caracteres, observou astros, mirou pontos e, finalmente, completou-a com a perfeição que amanhã veremos, porque nas sextas-feiras está muda; e por isso, como hoje é sexta-feira, teremos de esperar até amanhã. Poderá Vossa Mercê prevenir-se com as perguntas que lhe quiser fazer, porque, por experiência, sei que responde a verdade.

Ficou admirado D. Quixote da virtude e da propriedade da cabeça, e esteve quase não acreditando em D. Antônio; mas, vendo o pouco tempo que faltava para se fazer a experiência, não lhe quis dizer senão que lhe agradecia o ter-lhe descoberto tamanho segredo. Saíram do aposento, fechou D. Antônio a porta à chave e foram para a sala onde estavam os outros cavalheiros, a quem Sancho contara, entretanto, muitos dos sucessos e aventuras que a seu amo tinham acontecido. Nessa tarde levaram a passear D. Quixote, não armado, mas vestido com um balandrau cor de pele de leão, que faria suar naquele tempo o próprio gelo. Ordenaram aos seus criados que entretivessem Sancho, de modo que o não deixassem sair de casa.

Ia D. Quixote montado, não em Rocinante, mas num grande macho de andar sereno e muito bem aparelhado. Vestiram-lhe o balandrau, e nas costas, sem que ele visse, coseram-lhe um pergaminho, em que escreveram com letras grandes: Este é D. Quixote de la Mancha. No princípio do passeio atraía o rótulo a vista de quantos passavam, que se aproximavam logo e, como liam em voz alta: Este é D. Quixote de la Mancha, admirava-se D. Quixote de ver que todos os que olhavam para ele o nomeavam e conheciam; e, voltando-se para D. Antônio, que ia ao seu lado, disse-lhe:

— Grandes prerrogativas tem a cavalaria andante, porque torna quem a professa conhecido e famoso em todos os cantos da terra; senão, veja Vossa Mercê, senhor D. Antônio, que até os garotos desta cidade, sem nunca me haverem visto, me conhecem.

— É verdade, senhor D. Quixote — respondeu D. Antônio — que, assim como o fogo não pode estar escondido e encerrado, não pode a virtude deixar de ser conhecida; e a que se alcança pela profissão das armas resplandece e campeia sobre todas as outras.

Aconteceu pois que, caminhando D. Quixote com o aplauso que se disse, um castelhano, que leu o rótulo das costas, levantou a voz, dizendo:

— Valha-te o diabo, D. Quixote de la Mancha; como vieste aqui parar, escapando com vida às infinitas pauladas que apanhaste? Tu és doido e, se o fosses sozinho e dentro das portas da tua loucura, não seria mau; mas tens a propriedade de tornar doidos e mentecaptos todos os que tratam e comunicam contigo; senão, vejam estes senhores que te acompanham. Vai para tua casa, mentecapto, e olha pela tua fazenda, por tua mulher e teus filhos, e deixa-te dessas tolices, que te comem o siso e te descoalham o entendimento.

— Irmão — disse D. Antônio — segui o vosso caminho e não deis conselhos a quem vo-los não pede. O senhor D. Quixote de la Mancha é mui sensato, e nós outros, que o acompanhamos, não somos néscios: a virtude há-de se honrar onde se encontrar; e ide-vos em má hora e não vos metais onde não sois chamado.

— Por Deus! tem Vossa Mercê razão — tornou o castelhano; — dar conselhos a este bom homem é dar coices no aguilhão; mas, contudo, tenho muita pena de que o bom senso, que dizem que esse mentecapto em tudo mostra, o venha a desaguar pelo canal da sua cavalaria andante; e caia sobre mim e sobre os meus descendentes a hora má que Vossa Mercê diz, se daqui por diante, ainda que eu viva mais anos que Matusalém, der conselhos a quem mos não pedir.

Afastou-se o conselheiro e seguiram os outros no seu passeio; mas os garotos e toda a mais gente se atropelavam de tal modo a ler o rótulo, que D. Antônio teve de o tirar, fingindo que lhe tirava outra coisa.

Chegou a noite, voltaram para casa e houve sarau de damas; porque a mulher de D. Antônio, que era uma senhora principal e alegre, formosa e discreta, convidou outras suas amigas para vir honrar o seu hóspede e saborear as suas nunca vistas loucuras. Apareceram algumas, ceou-se esplendidamente e principiou o sarau quase às dez da noite. Entre as damas, havia duas de gênio alegre e zombeteiro; e, sendo muito honestas, eram, contudo, desenvoltas bastante, para que as suas burlas agradassem sem enfadar. Estas tanto teimaram em tirar D. Quixote para dançar, que lhe moeram não só o corpo, mas a alma também. Era coisa de ver a figura de D. Quixote, comprido e estirado, magro e amarelo, de fato muito justo, desengonçado e, sobretudo, pouquíssimo ligeiro. Requebravam-no, como que a furto, as donzelas, e ele também, como que a furto, as desdenhava; mas, vendo-se apertado com requebros, levantou a voz e disse:

— Fugite, partes adversæ; deixai-me no meu sossego, pensamentos importunos; levai para outro lado, senhoras, os vossos desejos, que aquela que dos meus é rainha, a incomparável Dulcinéia del Toboso, não consente que nenhuns outros, sem serem os seus, me rendam e avassalem.

E, dizendo isto, sentou-se no chão, no meio da casa, moído e quebrantado com tão bailador exercício. Mandou D. Antônio que o levassem em peso para o leito, e o primeiro que lhe deitou a mão foi Sancho, que lhe disse:

— Safa, senhor meu amo, muito bailaste! então pensais que todos os valentes são dançadores e todos os cavaleiros andantes bailarinos? Digo que, se tal pensais, estais enganado. Há homem, que mais depressa se atreverá a matar um gigante, que a dar uma cabriola; quando houverdes de sapatear, eu suprirei a vossa falta, que sapateio com um gerifalte; mas, lá no dançar não dou rego.

Com estas e outras palavras divertiu Sancho os do sarau e meteu seu amo na cama, cobrindo-o de roupa, para que se curasse, suando, do esfriar do baile.
 
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